Inequality

A desigualdade está despedaçando a democracia norte-americana e matando a prosperidade

A coesão social e, em última análise, as instituições democráticas estão sendo ameaçadas pelo falso pressuposto de que a desigualdade é irrelevante.

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Por David Alexander
Traduzido por: Paulo Roberto Soares

A democracia norte-americana está sob pressão.

O desencantamento público com o sistema democrático de governo tem crescido consistentemente nas últimas décadas, com as pesquisas de opinião do Gallup mostrando um grande declínio da confiança nas instituições democráticas. O número de norte-americanos que confiam na capacidade dos cidadãos tomarem boas decisões “sob nosso sistema democrático” está em seu piso histórico de 56%. O alarmante número de 40% da população “perdeu a fé” na democracia dos Estados Unidos, de acordo com uma pesquisa publicada no Washington Post ano passado. Os níveis de frustração refletidos nessas pesquisas – todas anteriores ao governo Trump – revelam as precondições para desenvolvimentos políticos sombrios. O imperativo para compreender suas causas não poderia ser maior.

ECONOMISTAS TÊM UM PONTO CEGO SOBRE A DESIGUALDADE

Dois fenômenos econômicos merecem uma atenção particular de todos os que estão refletindo sobre as fontes do descontentamento com a democracia. Uma delas gera infelicidade entre os cidadãos de média e de baixa renda, enquanto a outra contribui para as queixas dos que estão no topo. Os equívocos dos economistas desempenham um papel central em cada um desses fenômenos, e a continuidade do uso dessas hipóteses equivocadas no direcionamento das políticas públicas certamente levará a mais estresse no sistema político. Deixe-me explicar.

O primeiro equívoco relaciona-se ao ponto cego que os economistas têm em relação à competição. Esse ponto cego, por sua vez, é resultado de uma das hipóteses fundamentais da economia moderna, o princípio de Pareto, que considera que se uma política governamental amplia o poder de compra de um grupo, devemos considerar que haverá comprometimento zero de outros grupos, contanto que sua posição absoluta não retroceda.

O significado do princípio de Pareto para a economia tem sido enorme: porque a desigualdade é considerada irrelevante por definição, as políticas que os economistas julgam “eficientes” naturalmente tendem a ser aquelas que ampliam a distância entre os cidadãos de maior e menor riqueza. Em décadas recentes, a hipótese do comprometimento zero empregada pelos economistas tem sido central a muitas políticas que resultaram no aumento da desigualdade, e serão centrais para as mudanças que podem causar o mesmo no futuro.

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Os economistas aceitam a hipótese do comprometimento zero pois eles pensam em termos de bens e serviços como mobília, alimentos e cortes de cabelo: se o poder de compra de um grupo aumenta, isso não tem impacto sobre a possibilidade de outros competirem por esses bens – os produtores podem simplesmente aumentar os estoques. (De fato, os economistas algumas vezes citam o consumo desses recursos para argumentar que preocupações sobre a crescente desigualdade são irracionais.)

A falha na lógica dessa teoria é que há todo um leque de outros recursos criticamente importantes, ignorados pelos economistas, cujo estoque é limitado. Para esses recursos de estoque limitado, poder de compra é poder de ganho, significando que uma alta desigualdade diminui a possibilidade de os menos abastados competirem por eles.

ALGUNS RECURSOS ESSENCIAIS SÃO DE SUPRIMENTO LIMITADO E FORA DO ALCANCE

O primeiro desses recursos é simples mas essencial: parceiros matrimoniais. Em nosso mundo darwiniano, há uma intensa competição para se encontrar o melhor parceiro biológico, e recursos financeiros são um instrumento chave para vencer essa competição. Se aumentamos o poder de compra dos que já são os mais bem remunerados e de seus filhos, isso diminui a possibilidades dos menos abastados em garantir os parceiros mais desejáveis. Matt Ridley, um destacado autor de vários livros sobre a biologia evolutiva, define perfeitamente:

“Entre caçadores-coletores, mesmo a menor desigualdade traduz-se em mais bebês, em média. O homem que venceu a maior parte das lutas ou matou a maior parte dos inimigos toma a maior parte das oportunidades sexuais. Esse é o cálculo assustadoramente simples que ainda nos espreita… E isso ainda é verdade hoje: mesmo numa era em que as mulheres trabalham, de continência sexual e igualdade de gênero, o homem com mais dinheiro ainda tem mais oportunidades sexuais do que o homem com menos dinheiro. Pergunte-os. Então não é de se estranhar que não gostemos da desigualdade”.

A desigualdade tem crescido nos países mais desenvolvidos nas últimas décadas e é notável que no mesmo período as pessoas tenham crescentemente se casado com parceiros do mesmo nível econômico. O estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico sobre as tendências do casamento nos últimos anos descobriu um número declinante de pessoas casando fora de seu estrato econômico em quase todos os países desenvolvidos, incluindo os Estados Unidos. “Crescentemente”, diz a OCDE, “as pessoas se casam com conjunges de níveis similares de renda, um processo conhecido como casamento associativo”.

Outro recurso essencial com fornecimento limitado é a propriedade imobiliária. O crescimento desproporcional no poder de compra dos mais ricos nas últimas décadas tem ampliado a habilidade dessas pessoas e de seus filhos em competir pelas propriedades mais desejáveis, enquanto a habilidade dos que estão abaixo deles tem diminuído. Pesquisadores da Universidade de Princeton descobriram que nas últimas décadas a concentração de famílias de alta renda em regiões afluentes tem crescido significativamente, paralelamente à crescente concentração de famílias pobres em áreas de baixa renda. “A crescente desigualdade na esfera econômica”, concluíram os pesquisadores, “foi acompanhada por uma crescente separação espacial, conforme as famílias crescentemente se distribuem por renda e riqueza dentro da geografia suburbana da América do Norte”.

Um terceiro recurso do tipo é o ranking ocupacional. Ter um poder de compra adicional aumenta as chances dos mais bem remunerados e de seus filhos garantirem posições no topo de virtualmente todos os tipos de emprego, de incorporador de imóveis a restaurador. Determinadas políticas podem ampliar o número de postos desejáveis mas, para a garantir os mais desejáveis desses postos, ainda é o caso que um maior poder de consumo significa um aprimoramento na capacidade de competir contra os outros. Pesquisa de economistas da Reserva Federal dos Estados Unidos [equivalente ao Banco Central] e do Departamento do Tesouro descobriu que a estagnação na carreira aumentou significativamente nas últimas décadas, com os mais bem remunerados ocupando os melhores empregos por mais tempo, ao mesmo tempo em aqueles com remuneração mais baixa permanecem mais tempo nos cargos menos desejáveis.

Os efeitos combinados desses recursos, obviamente, têm profundos impactos sobre as oportunidades na vida de uma pessoa, impactos que são, por sua vez, transmitidos para as gerações seguintes. Os economistas têm ficado desconcertados pelas preocupações com o crescimento da desigualdade – “eles têm mais TVs que nunca!” – mas conforme consideramos a perda de poder de acesso a recursos tão essenciais quanto parceiros, território e ocupações no mercado de trabalho, essa frustração é inteiramente previsível. As pessoas com relativamente menos riqueza têm perdido a capacidade de competir por coisas que importam.

Fica claro que uma das consequências não intencionais das políticas governamentais que desproporcionalmente elevam o poder de compra dos cidadãos de maior renda é permitir que eles protejam a si e a seus filhos da competição por esses recursos. Depois de algumas décadas, o efeito cumulativo da ampliação da diferença de poder de acesso aumentou a rigidez social. O eminente cientista político Charles Murray encontrou nos Estados Unidos de hoje “uma formação de classes que é diferente em espécie e grau de separação de tudo o que a nação jamais viu”. Com a redução do poder de acesso, não surpreende que muitos desses cidadãos de baixa renda sintam que “o sistema é rígido” e que “o sonho americano morreu”.

Se os decisores políticos norte-americanos continuarem a introduzir políticas que movem os Estados Unidos na direção da hiper-desigualdade, as consequências da perda do poder de acesso para as famílias não-abastadas serão, previsivelmente, cada vez mais severas. Passo a passo, vamos ver um maior comprometimento da competitividade, maior estratificação social e uma ainda maior frustração com o sistema político. Economistas nessa situação, enredados na hipótese de Pareto de comprometimento zero, podem em último caso, situar-se como os involuntários promotores da desordem democrática.

O CRESCIMENTO DA DESIGUALDADE AFETA OS RICOS TAMBÉM

Agora que explicamos uma das fontes principais do mal-estar afetando os menos favorecidos, voltemo-nos para as frustrações dos mais ricos, pois eles constituem o outro lado do torno espremendo as instituições da democracia.

Um dos aspectos mais subapreciados do desencantamento público global com a democracia nas últimas décadas tem sido o crescimento do apoio ao autoritarismo entre os mais ricos. A mais recente pesquisa Valores do Mundo [World Values Survey] mostra que pela primeira vez as pessoas de maior renda em quase todas as regiões do mundo estão mais suscetíveis a apoiar o autoritarismo do que as pessoas de renda média ou baixa, incluindo-se os Estados Unidos, onde o apoio praticamente dobrou desde 1995 para 34%.

A fonte principal da crescente frustração dos mais ricos não é, obviamente, sua situação financeira, que nunca foi tão boa. É sua percepção de que eles estão carregando mais do que sua parte do fardo dos impostos. Sustentando essa queixa está um “argumento de compartilhamento de impostos” construído por economistas, que se sustenta em estatísticas de imposto de renda que mostram uma crescentemente elevada proporção de impostos sendo paga pelos abastados e uma correspondente menor proporção paga pelos mais pobres.

O professor de Harvard, Gregory Mankiw, autor do manual de economia mais popular dos Estados Unidos, usa estatísticas de impostos e despesas para alegar que a maioria dos norte-americanos são, agora, “compradores” porque eles recebem mais do governo do que dão. “A classe média”, escreve Mankiw, “tendo sido por muito tempo um contribuinte líquido para financiar o governo, é agora um recebedor líquido da generosidade governamental”. Mitt Romney, que empregou Mankiw como um conselheiro econômico, baseou-se em estatísticas de distribuição dos impostos pagos quando fez seu comentário desdenhoso de que metade dos norte-americanos – 47% – perderam o senso de responsabilidade pessoal.

Há muitas falhas nessa análise, mas o principal erro lógico em usar a distribuição dos impostos pagos como demonstrativo de “injustiça” é que ela ignora tendências estruturais subjacentes na desigualdade. O que tem acontecido é que nas últimas décadas, ao redor do globo, os mais abastados têm sido agraciados com uma elevação desproporcional em sua renda e, como resultado, a proporção de impostos pagos por eles também se elevou. A maior participação no total de impostos pagos não demonstra uma maior virtude dos mais abastados quando comparados à geração de seus pais; é apenas um reflexo da renda bruta maior. O ponto relevante é que a renda líquida (após o pagamento dos impostos) dos mais abastados está maior do que nunca, tornando ilógicas suas reclamações de que são vítimas.

Não obstante as falhas em usar a distribuição dos impostos como uma medida de virtude relativa, a sensação de injustiça entre os abastados é real e muito difundida. Uma retórica desagradável surgiu do argumento da distribuição dos impostos, dividindo a sociedade entre realizadores e sanguessugas, e muitos dos mais abastados têm usado essa retórica para exigir impostos mais altos para os de média e baixa renda. Alguns dos de maior renda, de especuladores do mercado financeiro a políticos, têm ido além e sugerido que o direito ao voto das pessoas de baixa renda deve ser reduzido de algum modo.

A consequência dos economistas fornecerem legitimidade a essas queixas dos mais ricos é séria: alguns ricos norte-americanos têm se sentido como se eles fossem os únicos reais colaboradores para a sociedade enquanto os outros são efetivamente parasitas do sistema. Sabemos a partir da história que rotular grupos como cidadãos inferiores pode gerar políticas que os tratam como se fossem realmente cidadãos de segunda classe. Onde quer que a elite de um país se sinta enganada e infeliz, fará pressão para que o sistema funcione de modo a proteger seus interesses.

MENOS DESIGUALDADE SIGNIFICA PROSPERIDADE DURADOURA

Uma vez que tenhamos entendido as causas da crescente frustração tanto no topo quanto na base da pirâmide econômica, as profundamente desestabilizadoras consequências políticas do crescimento da desigualdade tornam-se mais claras. Onde quer que a desigualdade subjacente cresça, podemos ver o desenvolvimento de também crescentes e intensas queixas nos dois extremos do espectro econômico: aqueles na base sentem-se cada vez menos competitivos em áreas importantes, enquanto aqueles no topo sentem-se cada vez mais ressentidos com a proporção de impostos vindo deles e exigem que os da base comecem a contribuir com mais. Se a diferença no poder de acesso aumentar o suficiente, é possível imaginar o sistema desmoronando em virtude de uma combinação de frustração, medidas que retrocedem direitos, demagogia populista, repressão e estagnação – o tipo de ciclo que os países da América Latina, que possuem os mais altos níveis de desigualdade do mundo, atravessam regularmente.

Então o que os decisores políticos deveriam fazer?

As boas notícias são que a fórmula ortodoxa para o sucesso econômico – governo menor, orçamento conservador, mercados competitivos, regulamentação reduzida, mercados de trabalho flexíveis – continua intacta. Simplesmente precisamos corrigir as duas hipóteses erradas identificadas acima: renunciar ao princípio de Pareto de comprometimento zero e eliminar a hipótese que uma proporção elevada de impostos pagos demonstra que as pessoas estão numa situação pior.

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Corrigir esses dois erros permite uma avaliação mais sensível da política que evita os extremos da obsessão sobre a desigualdade e de acreditar que ela não é relevante. Permanece um simples fato que os governos, algumas vezes, irão precisar introduzir políticas que implicam numa maior desigualdade. O mais importante é que antes de definir as propostas que ampliam a desigualdade como “eficientes”, os legisladores e economistas precisam levar em conta os prós e contras dessas propostas.

Os políticos norte-americanos deveriam beber do que disse o filósofo do bom-senso e ex-primeiro ministro australiano, John Howard. Howard foi um grande apoiador da livre iniciativa, mas ele regularmente notava os profundos benefícios de um baixo nível de desigualdade para alimentar uma prosperidade duradoura. “Nossa coesão social… é certamente a mais elevada realização da experiência australiana ao longo do século passado”, ele certa vez disse em um relevante discurso. “Ainda assim, essa coesão será testada se a riqueza e a oportunidade não puderem ser justa e amplamente distribuídas por toda a sociedade, como no passado”. Com a política norte-americana desgastada como está, não é despropositado pedir aos políticos e economistas que reexaminem algumas de suas hipóteses fundamentais. Seria uma vergonha, depois de tudo, perder a democracia por um par de equívocos intelectuais.

Originalmente publicada em The National Review.

26 de maio de 2017

 


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